A propósito do que temos exposto sobre excelência da cortesia, mencionei certo comportamento (melhor diria “fenômeno”) que muito me surpreendeu em Paris: temia não ser bem acolhido e ser tratado rispidamente (conforme a lendária falta de hospitalidade e descortesia do francês de nossos dias), mas, muito pelo contrário, fui muito bem acolhido e tratado com extrema gentileza. Como procurava explicação para esse fato que me assombrou, um amigo, o Sr. Marcos Aurélio Vieira, disse-me que tinha lido um livro, publicado em 2009, sobre a história da polidez na França. Segundo ele, em tal livro certamente eu encontraria resposta para o “fenômeno”.
Claro, pedi o livro emprestado! No que fui gentilmente atendido com toda presteza. Assim, comecei a ler a obra (544 páginas, sem nenhuma ilustração... Para o público brasileiro, creio que ela lucraria com algumas ilustrações...). Pretendo publicar aqui alguns trechos escolhidos para proveito de nossos leitores. Antes disso, alguns dados:
Para a postagem de hoje, ofereço aos leitores alguns “morceaux choisis” mais significativos que escaneei da introdução do referido livro (entre as págs. 9 a 16). Apenas inseri os subtítulos, as ilustrações, e assinalei alguns pontos.
Dedicatória do autor: Para Manon, Charles, Bathilde, Margot e Gabrielle, para Eloi, a fim de que eles compreendam, um dia, por que seus pais lhes ensinaram boas maneiras. |
[Comentário: Chamo a atenção para a data “1970”. “As boas maneiras sofrera declínio” logo após a Revolução da Sorbonne (maio de 1968, em Paris). A explosão da rebelião estudantil e libertária, na qual se preconizou uma nova concepção de vida: “Nem mestre, nem Deus, nem regra”. Era um dos slogans bradados pelos estudantes revolucionários de maio de 68. Visava-se implantar a anarquia, estabelecendo uma sociedade “sem regras”. A meta era eliminar os aspectos anti-igualitários da sociedade, expressos nos costumes, nas boas maneiras, na diferença entre os sexos, no respeito pelos superiores, nas tradições de família etc.]
E não se trata, no caso, de um novo avatar do eterno conflito entre adultos e adolescentes, pois estes, em sua grande maioria, parecem perfilar tais ideias e princípios: a se acreditar na pesquisa Sofres, divulgada em novembro de 2003, os comportamentos que os ‘jovens' consideram, quase por unanimidade, inadmissíveis (insultos ao professor, 96%; falta de respeito com os pais, 94%) dizem respeito a atentados contra as regras da polidez, percebidos por eles como muito mais graves do que um bom número de delitos sujeitos à sanção penal (como trabalho noturno, fraude nos exames, consumo de entorpecentes).
Na parede da Sorbonne, pichado o lema
contestatário: “Défense d’interdire!” (É proibido proibir!)
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Polidez: uma história de altos e baixos
“Ora, sem questionar no momento as razões profundas, a consistência e a perenidade desses indícios, cabe constatar que, se há um retorno, ele se dá porque antes houve um declínio: é que, no curso do tempo, o savoir-vivre conheceu mudanças, mutações profundas. Na verdade, a polidez tem uma história: uma história não linear, descontínua, com altos e baixos, tempos fortes — a Restauração, nas últimas décadas do século XIX, talvez no início do século XXI —; tempos mortos — a Revolução Francesa, o momento posterior a Maio de 1968 —; reviravoltas — a Monarquia de Julho, a Primeira Guerra Mundial —, avanços e recuos...
Se afinarmos o propósito, veremos que não existe apenas uma história geral da polidez — essa que acabamos de evocar —, mas também uma história particular, essa de modos e costumes, formas, regras, ritos do savoir-vivre que também são objetos de variações permanentes, por vezes muito rápidas. Assim é que, no curso da idade de ouro da polidez burguesa, representativa do século XIX, certas práticas surgem, ao passo que outras tendem a desaparecer, a se simplificar ou, ao contrário, a se complicar e a se sobrecarregar”.
Multiplicidade no savoir-vivre em cada país, cada região
“Paralelamente a essa história, existe uma geografia do savoir-vivre. ‘Sem a polidez’, assinalava o ensaísta Alphonse Karr, na metade do século XIX, ‘não nos reuniríamos senão para combater. É preciso, portanto, ou viver só ou ser polido’.(1) Por essa razão, de uma maneira ou de outra, a polidez existe em todas as sociedades humanas, em todos os países. No entanto, qual cada tem a sua, mais ou menos singular e distinta da dos seus vizinhos: ‘Se um caixeiro viajante, da região do Limousin, me diz: tim, tim, erguendo seu copo, eu lhe respondo gentilmente: com prazer', contava com alegria o romancista Jacques Perret. ‘E se, tendo notado um garagista, na região da Picardia, gritando: bye, bye!, eu dou um passo atrás, para gentilmente me informar sobre o sentido dessa locução e mostrar o interesse que tenho pela gíria da região. O savoir-vivre não é ainda, definitivamente, internacional, e faremos o possível para que não venha a ser. Com a consciência universal, a democracia planetária e a economia mundial, temos amplos motivos para estancar nossa sede, sem instituir a mesura planificada nem racionalizar o buquê de aniversário como se fosse o diâmetro dos pneus. As mil maneiras de realizar uma mesura ou enviar um buquê de aniversário colaboram para essa diversidade que torna a condição humana mais ou menos suportável’. A cada um o seu savoir-vivre: ‘Certos estrangeiros, nórdicos dentre outros, ficam indignados quando nos veem engolir um ovo quente com nacos de pão mergulhados no molho. Estão no seu direito: bom uso aqui, mau costume acolá’.
Num mesmo país, discerniremos às vezes variações sensíveis: sempre mordaz, Jacques Perret sugeriu que é possível ‘estabelecer um mapa da França onde as regiões seriam assinaladas segundo o protocolo das saudações e dos abraços. Veríamos, por exemplo, um traço pontilhado: limite norte do beijo triplo, como para a cultura da vinha’(2) ou um encontrão desagradável.
Essa geografia do savoir-vivre é, de saída, uma geografia histórica, cada região, cada país submetendo-se, no curso do tempo, à influência mais ou menos acentuada de alguns dos seus vizinhos, sem, no entanto, perder inteiramente sua singularidade. Na França, sempre existiram, assim, diferenças notáveis entre o savoir-vivre parisiense, eco direto e herdeiro da corte, e uma polidez provinciana mais rústica, mais tradicional, permanentemente defasada em relação à capital, que nessa matéria sempre deu o tom, sem que ninguém jamais sonhasse em disputar o privilégio.
Dentro da própria capital, distinções acentuadas são discerníveis de longa data: ‘Sob Charles X, e ainda sob Luis Filipe’, observou o historiador Jacques Boulenger, ‘cada quarteirão de Paris tinha seu aspecto particular, seus costumes, seus habitantes, seu ‘mundo’, a bem dizer, e esses ‘mundos’ não se confundiam jamais’, separados por ‘mil nuanças de polidez, de vestimenta, de maneiras e de linguagem’.(3)
Mas isso significa apenas que, na capital, certos círculos dominantes, em geral reagrupados em determinados lugares (o bairro de Saint-Germain até 1830, o quarteirão do passeio de Antin e da Nouvelle Athènes entre 1830 e 1840), dão o tom aos vizinhos, e a partir daí o impõem, pouco a pouco, ao conjunto da cidade e depois do país. É de Paris, com efeito, que vêm as modas, os usos, mas também sua contestação — como na época revolucionária, depois de 1918, ou ainda, depois de Maio de 1969, no desdobramento da liberação dos costumes.
Em contrapartida, se existe uma geografia (histórica) da polidez, pode-se afirmar que não existe uma sociologia do savoir-vivre, ou, mais exatamente, que esta deixou de existir após a Revolução Francesa, que representa, a esse respeito, uma cisão radical — uma cisão de que Balzac se dá conta num artigo surgido em maio de 1830, ‘Palavras da moda’: ‘Agora que nossos costumes tendem a nivelar tudo, agora que um amanuense de doze centavos pode levar vantagem sobre um marquês, pela graça das maneiras [...], só as nuanças permitirão às pessoas reconhecerem-se, como é devido, no meio da multidão’.(4) Ainda que não goze de unanimidade, ainda que seus preceitos não sejam respeitados de modo idêntico em todos os meios, nem por isso a polidez vem a ser a mesma para todos. [...]”
Revolução Francesa: Golpe contra a “velha França”
“Ainda que a França, após o reinado de Luis XIV, seja universalmente reputada por seu savoir-vivre, constata-se que a maior parte das regras em vigor evoluiu consideravelmente ao longo dos três últimos séculos. [...]
A história da polidez na França, da Revolução aos nossos dias, poderia ser subdividida em quatro tempos sucessivos. O primeiro se anuncia ao redor de 1789, por meio de uma crise de extrema virulência, no curso da qual os mais radicais tentaram fazer desaparecer a velha civilidade francesa, na qual veem o fruto envenenado do Ancien Régime que eles sonham erradicar até a última lembrança. Mas essa tentativa é rapidamente liquidada por um êxito retumbante, que se inicia com a queda de Robespierre, em julho de 1794, e se conclui com a chegada de Bonaparte ao poder, após o golpe de estado do Brumário no ano VIII (novembro de 1799): os anos seguintes serão marcados pela condenação dessa ‘antipolidez’ jacobina e pela reafirmação das regras do savoir-vivre clássico, que de fato, nesse breve período revolucionário, não se ressentirá de golpes súbitos. Porém, apesar do início catastrófico, o século XIX, em sentido amplo — que se estende de 1800 à Primeira Guerra Mundial — pode ser considerado a idade de ouro da polidez burguesa.
Esse largo período não é evidentemente homogêneo: ele conhece desarranjos significativos, em 1814, com a Restauração, em 1830, com o aquecimento da anglomania, em 1850, com o início do aburguesamento da vida rural, na década de 1890, com a moda fim de século etc. Porém, o período apresenta certo número de traços característicos; o fato de que as regras do savoir-vivre vão ao mesmo tempo se sofisticar — tornando-se no geral cada vez mais complexas, exigentes, rígidas — e se difundir até as camadas relativamente mais modestas da sociedade”.
Mudanças entre as duas guerras e no post-guerra
“Esse segundo período termina com a Grande Guerra Mundial. Certamente, nessa matéria — que o historiador das representações, dos costumes e dos comportamentos toma como objeto — não existem cesuras nítidas nem fronteiras bem delimitadas: é por isso que bom número de regras de decoro começa a se alterar muitos anos depois da Grande Guerra — como a obrigação de não fumar, imposta às mulheres — ao passo que outras subsistirão, sem mudanças notáveis, nos decênios seguintes e, em alguns casos, até nossos dias.
Enfim, com o início da década de 1950 abre-se a era das incertezas, a nossa: de um lado, persegue-se o movimento de desconstrução iniciado no período entre as duas guerras, e o encolhimento progressivo dos grupos sociais respeitadores dos usos do savoir-vivre tradicional; mas, por outro lado, parece também ganhar prestígio, sobretudo depois da década de 1990, certa tomada de consciência de sua importância, assim como a aparição de novas formas de decoro, correspondentes a práticas e atividades até pouco tempo atrás desconhecidas, inabituais ou inconfessáveis.
Fluxo e refluxo? Numa época em que certa renovação do savoir-vivre parece coexistir com uma radical colocação em causa de seus princípios da metáfora — e, meditando sobre o passado, poderemos nos interrogar sobre qual seria, em nossas sociedades pós-modernas e globalizadas, o futuro da polidez”.
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Notas:
(*) Savoir-vivre. Definição extraída do DICIONÁRIO HOUAISS: Conhecimento e prática dos usos e costumes da vida social; habilidade em lidar com os seres humanos em geral; tirocínio, discernimento.
1. A. Karr, Une poigné de vérités, Michel Lévy Frères, 1866, p. 303.
2. J. Perret, “La France vue par un Français”, Savoir-Vivre International, ODE, 1951, pp. 14, 18, 20.
3. Boulenger, Les Dandys, Calman-Lévy, 1932, p. 191.
4. H. de Balzac, “Des morts à la mode”, Oeuvres diverses, t. II, I.
2 comentários:
Essa tal polidez já escondeu muito canalha...e continua escondendo!
Os cretinos que se escondem atrás da polidez são hipócritas. E os que negam a polidez esses sim são canalhas.
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